quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Sobre Porcelanas

Nunca acreditei nessa coisa de colar peças de porcelana. 

Quando criança tive algumas bonecas, alguns cenários que deveriam ter sido moda lá pelos anos 90 ou 2000. Sempre dividi quarto com minhas irmãs, mas conquistei um espaço só meu na parede, onde tinha uma prateleira só minha, com minhas lembrancinhas de uma vida ainda curta e cheia de pequenas histórias. Lá estavam rigidamente expostas as coisas mais valiosas da minha existência, objetos que eu cuidava com carinho e disciplina todas as semanas. Pó retirado, roupinhas engomadas, cabelinhos arrumados. Peça por peça. 

Claro que a rotina não poderia ser mais instável do que uma casa (naquela época!) com 5 crianças e, naturalmente, desgraças eventualmente aconteciam no meu templo dedicado à beleza. Além de eventuais intervenções secretas de mãozinhas ainda menores que as minhas, às vezes a fragilidade e a rigidez se chocavam e minhas peças se transformavam em pedaços. Lavadas por lágrimas e olhos vermelhos, a solução era submeter as vítimas aos procedimentos de emergência da cirurgiã chefe, minha mãe. 

De uma habilidade assustadora, tive muitas recuperações que não eram notadas. Colagens precisas e sem resíduos, verdadeiras obras de restauração digna de afrescos. Confesso dizer que ainda hoje tenho uma dessas decorações submetidas a colagem e que guardo para quando eu voltar. É uma pequena caixinha de joias com uma fada linda sobre algo como um monte verde. O crime: a ponta de sua asa se partiu uma vez. Deve ter algo próximo aos seus 20 anos sob meus cuidados, acredito eu, porém que nem sempre foram assim tão cuidadosos. 

Gostaria de dizer que esses casos foram sempre bem sucedidos e que depois de um conserto a vida seguia normalmente. Só que a mente não dá refrescos e constantemente eu olhava minhas bonecas e encontrava suas cicatrizes, mesmo que invisíveis, gritando pra mim o quanto fui displicente, relapsa e incapaz de garantir o básico: segurança. 
Doía ver meu fracasso. 
Doía perceber que por mais que eu me esforçasse, não dava para esquecer que aconteceu.

Ainda assim, segui apaixonada e insistente em possuir esses artefatos, mesmo quando começaram a sair das prateleiras das lojinhas de presente e meus olhos começaram a se interessar por outros tipos de enfeites. Segui com poucos mas significativos objetos e ao longo do tempo criei orgulho de tê-los comigo, sustentando suas reparações invisíveis, me lembrando sempre de onde eu vim e me fazendo valorizar o que aprendi no caminho. Em alguma idade, inclusive, me tornei uma razoável restauradora e alcancei o nível da professora. O que me fez dedicar tanto àquela arte foi saber que as coisas que eu tinha não poderiam nunca ser substituídas, seja porque saíram do mercado, seja porque não contariam parte da minha trajetória. 

Naquela altura, deixei de acreditar que simplesmente colar as peças de porcelana fazia sentido. O que eu estava fazendo não era corrigir nada, mas colocar ali algo de mim, que não seria necessariamente imperceptível ou de todo belo, mas que trazia consigo a beleza de crescer. Então o que eu entendi é que, mais do que tentar recuperar qualquer passado, eu estava construindo futuros. Logo, não colava peças de porcelana, eu criava novas histórias.  

Hoje eu gosto da ideia pensar que posso dizer "não às minhas cicatrizes" e que posso sim ignorar a existência de correções como consegui em poucos momentos com minhas decorações. No entanto, a verdade é que eu continuo sabendo que elas se partiram alguma(s) vez(es) e que não há nada que possa mudar o que de fato aconteceu. O que mudou é que, para as que ainda me acompanham de alguma forma, eu sigo encontrando a magia das fadas, bosques e campos justamente porque depois de tanto tempo continuam comigo. São novas flores, mas continuam flores. 

Começar é bom, mas nunca vou abrir mão da esperança e da magia que sinto toda vez que amadureço o olhar sobre mesmas paisagens. 
Sigo agradecendo àqueles que me mostram que é possível, em conjunto, fazer grandes obras.

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