Ele acordou com tudo fora do lugar.
As prateleiras carregavam livros desinteressantes. Os armários estavam cheios de roupas que não eram suas. Escreveu um recado com uma letra que não era sua. Divagou sobre um momento que certamente não era o seu.
Claro que era um sonho. Daqueles que lhe levam pra um universo aterrorizadamente palpável mas irreal.
Decidiu parar de invadir os lençóis desconhecidos. Procurou por um banheiro, uma água que pudesse provar que não estava em lugar algum. A sensação do toque da sola dos pés era conhecida. A orientação natural o levou exatamente para onde queria chegar. Umideceu as mãos e molhou todo o chão do banheiro, na tentativa de afastar as olheiras, de uma maneira tão íntima que não soube explicar. Os passos o levaram para a vista rotineira da varanda.
Assustou-se com a perfeição que sua imaginação criara esse mundo paralelamente tão próximo ao seu. Como numa sequência pré-definida, pegou a manteiga, que estava no lugar correto da geladeira, aqueceu as fatias de pão de forma e sistematicamente fez a mistura adequada. Usou a caneca do chá. Cortou o mamão e tirou as sementes.
Alimentou-se e deu conta que estava sozinho na casa-do-sonho. Lembrou de algo que deveria fazer, mas que estava num lugar tão distante da memória que não saberia dizer se era importante ou não. A campainha tocou e beijinhos apressados lhe diziam isso-aquilo-e-aquele-outro. Não era uma sensação de primeira vez... E os beijinhos separam uma roupa que não era sua e instruiu a vesti-las.
Como uma reação máquina, seguiu as instruções pois já estava interessado em saber em que ponto daquela maluquice ele acordaria cansado e descobrindo que ainda eram três da manhã.
Os beijinhos eram roteiros e determinação, sabiam o que deveria ser feito. Levaram-no, bem vestido, a um lugar cheio de vidros e de plantas que você vê nas agências bancárias. Colocaram-no numa cadeira bacana e mais confortável do que qualquer uma que já havia testado. A sala era legal, muita iluminação e pouca janela, mas era legal. Reparou que seu nome estava em algum lugar dali, mas não prestou atenção em onde nem o porquê.
Beijinhos sairam excessivamente animados e entraram abraços e olhares duros. Abraços só agiam de maneira irregular e confusa, já olhares duros diziam coisas a serem feitas e prazos e metas e pessoas e conexões e mais uma porção de e's que não saberia repetir.
Começou a se entediar com o sonho. Já havia ido longe demais e o despertador não o chamava.
Uma hora beijinhos apareceram bravos por qualquer motivo que não sabia e se deu conta que aquela noite de sono estava contando uma história de dias e dias. Continuou nos lugares desconhecidos e voltando para a casa toda fora do lugar. Precisava saber onde aquilo ia parar, já estava envolvido com os personagens e consigo mesmo naquele papel.
Volta e meia alguma coisa naquele ritmo sem sintonia mudava e ele não se entediava tanto. Nesses momentos até achava que aquele sonho valeria a pena no final. Já pensava em como ia contar para os amigos aquela experiência tão bizarra de experimentar uma vida que não era a sua. Nos inúmeros momentos de desinteresse, ele arquitetava o que faria quando acordasse, o café que tomaria e a roupa pra sair.
Finalmente um momento de emoção! Aquele sonho o fez sentir! Era uma dor não muito agradável na verdade. Uma coisa física mesmo, ali no meio do peito. Havia brigado na rua? Beijinhos corriam e gritavam, abraços estavam sérios e não via olhares duros. Por um instante saiu de si e conseguiu se ver. Estava diferente e mudado. Sabia que era o próprio mas não o reconheceria quando acordasse. Apesar a atmosfera tensa, estava gostando de sentir algo depois de todo o tempo de tédio.
Deu adeus a si mesmo.
E não acordou.
Seu enterro aconteceu no mesmo dia a noite. Cemitério da Saudade. Causa mortis: inadequação ao meio.
(Listening: Radiohead - Fake Plastic Trees)
quinta-feira, 25 de abril de 2013
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